Tudo que eu vejo – fragmento IV

De repente, fez-se a luz. E, ao redor dela, notas viajando entre as lacunas do espaço-tempo. Mínimas, semíninimas, uma profusão de semicolcheias em uma sinfonia terrivelmente bela, com timbres nunca ouvidos até então pelos nossos ouvidos medíocres e sem apuro. Não havia rallentandos, pianíssimos e pausas naquele lenta rapidez…..E ainda assim, todo aquele belo quadro, ouvido ao longo do infinito e erigido com as cores mais belas e formas mais inusitadas, era capaz de ser sentido em toda a sua plenitude furiosa. Era, sem sombra de dúvida, uma manifestação de perfeição.

E foi exatamente este fato que despertou Sérgio Malheiros de seu torpor. Afinal de contas, como poder presenciar aquele quase divina junção de melodia, harmonia e ritmo sem estar absolutamente fora do mundo em que vivia, se decepcionava e do qual pensava um dia poder estar livre para, enfim, reencontrar-se com sua inspiração. A felicidade derradeira, afinal. Não fazia mais muita questão de viver naquele mundo de carne e osso, limitado e sem maiores horizontes, e no fundo sabia que estava preparando o terreno para quando esse dia chegasse. Os problemas de saúde, o estresse, as drogas, foram apenas de um prelúdio para a obra de maior sucesso de sua vida nos últimos 12 anos: a morte inglória e patética em um banheiro de aeroporto.

Sérgio se moveu assustado pelas luzes que começaram a se entrelaçar entre ele e o vazio. Sim, seus olhos não haviam se enganado, pois ele conseguia vê-las se movendo sinuosamente, tomando formatos quase femininos que se olhavam languidamente, antes de se tornarem um só ponto luminoso no espaço. E seus movimentos foram ficando cada vez mais frenéticos.

Enquanto tudo isso se desenrolava, tal qual num passe de mágica, as notas foram acompanhando as luzes, e elas dançavam harmônica e harmoniosamente, em um prestíssimo arrebatador.  Ele pensou que poderia estar louco e que nada do que estava acontecendo naquele momento era real.

Mas, pensou: em última instância, o que poderia ser chamado de real? E descobriu que, por agora, aquilo não importava. Tudo que precisava, e queria, era aproveitar aquele momento

Foi quando, após um longo acorde que pareceu envolver o mundo inteiro, fez-se o silêncio. E o que era branco, luminoso e sem formas definidas logo começou sua metamorfose. A solidão que começava a se avizinhar, simpaticamente, agora tinha companhia. E ela não era nada simpática.

Sim, Sérgio percebia, naquele momento, que havia algo naquela mudez, que naquele não som residia. Algo que, na escuridão pujante, se escondia. Que mentia para fazê-lo pensar que estava tudo bem e tranquilo quando obviamente não era assim. Que morria a cada instante apenas para renascer mais amedrontador no instante seguinte, em um eterno retorno. Noves fora ele não sentir o ar correndo em seus alvéolos pulmonares, ele sentia aquela presença desconhecida e ameaçadora pulsar, e sua respiração era tal qual um vento gelado, anunciando o inverno de sua alma, em tons inexoráveis de branco e cinza. O medo invadiu Sérgio de tal forma que ele jamais havia experimentado antes, em vida. Agora, que não possuía uma vida para perder, é que o medo mostrava sua face mais destruidora e cruel.

Seus passos se dirigiram para trás, em direção à escuridão. Para onde ele ia? Não se sabia. Tudo era incerto.

Tudo que eu vejo – fragmento III

III

Redação do jornal Diário do Rio, na rua Santa Maria, 147. Localizada na divisa entre o Estácio e a Praça Onze, é uma parte da cidade com características bem peculiares.  A rua que abriga a redação segue em frente, ultrapassando um quilômetro de extensão e passando por diversos pontos quase até o Sambódromo da cidade. Os caminhos que saem dela podem tanto levá-lo à zona Norte quanto à zona Sul, e tudo depende da direção a se tomar. Em dias de sol(e como eles são comuns no verão carioca), o calor descomunalmente intenso assola todos os que se encaminham, a passos largos, rumo ao imponente(?) prédio. Em dias de chuva, a rua costuma alagar em um piscar de olhos, dificultando a saída de todos os infelizes presos naquela jaula de perversidade que era a redação do Diário.

Tá bom, estou só pintando quadros com linhas exageradas. A maioria das pessoas que trabalhava ali tinha alguma decência, e não pretendia passar por cima de ninguém para conseguir os seus objetivos. Mas era grande a cambada de puxa-sacos, malditos jornalistas medíocres que precisavam afagar o ego dos chefes para conseguirem algum respeito lá dentro. E esse era um dos aspectos com os quais Guilherme Marques não se identificava dentro da profissão. Ou pelo menos, não ultimamente.

( Ao leitor, uma declaração importante: não há seres unidimensionais nesses escritos. Tal qual na vida, não há pessoas que sejam minimamente próximas de chegar a pensar na possibilidade de perfeição. Nem heróis e nem vilões, em seus maniqueísmos incoerentes. O que vocês verão aqui são apenas pessoas.Em suas atitudes majestosas e em suas mais animalescas decadências… pessoas. Dito isso…)

Guilherme não era um cara especialmente marcante. Pelo menos não à primeira vista. Ainda tentando emagrecer mais e ficar em forma depois do término com a namorada, seus óculos meio tortos, meio inexpressivos, impediam que algumas pessoas soubessem que ele tinha olhos verdes, por exemplo. O cabelo baixo lembrava um corte militar, carreira que ele jamais imaginaria pensar em seguir. As calças jeans, surradas pelos meses de uso, praticamente eram sua segunda pele. Ou melhor, a primeira. Suas camisas, básicas até demais, acabavam por dar um toque extra de não-charme à sua presença na maioria das vezes. Mas independente de todos esses fatos, Guilherme era um cara querido: fosse pelos amigos, fosse pela família e até a maioria dos colegas de trabalho que, à sua maneira, demonstravam por ele seu apreço e amizade. Mas….

Ali, Guilherme se sentia preso. Com poucas possibilidades de crescimento profissional. Queria poder partir para novas veredas dentro do jornalismo, dentro do rádio( uma de suas recentes paixões) ou mesmo na literatura, por que não? Até mesmo tentar novas pautas, diferente do factual engessado e condicionado do dia a dia de uma redação. Não por acaso todas as últimas tentativas de falar com editores sobre novos direcionamentos para as matérias de cada dia haviam falhado miseravelmente. Guilherme encontrava-se, atualmente, redigindo notas policiais que ele costumava copiar de outros sites. Função até certo ponto importante, mas com nenhum resquício de brilho ou talento necessários. Brilho e talento que ele, antes de tudo, precisava saber se possuía. Em seguida, fosse o caso, exercitar esses nobres nomes que em poucos momentos, na história do ser humano , estiveram realmente amalgamados. *Reparem a pretensão do narrador

Havia ainda o momento pelo qual Guilherme estava passando. Seu término de namoro havia sido levemente conturbado. Desculpas, insatisfações, o doloroso clichê: “ Não é você, sou eu”….tudo aquilo estava presente no pacote, e estava sendo difícil, ele pensava, passar por tudo aquilo incólume. Um amor, para passar, muito se demora. E, às vezes, ele nunca vai embora. Quem sabe poderia surgir alguma garota nova…quem sabe não.

A vida seguiria seu curso, mas para onde?

Para trás, quando da tentativa dele, Guilherme, de sair pelas noites bebendo e conhecendo garotas que nada acrescentariam em sua vida, se tornando apenas uma memória obscura da noite anterior da qual, por vezes, você não faz a menor questão de lembrar? E trabalhar em tais condições, físicas e espirituais?  Como prosseguir?

Para frente, em busca de sucesso, fama e fortuna que poderiam não vir nunca? Tentar caminhos obscuros, pelos quais não se sabia onde poderia terminar? O desconhecido a espreitá-lo a cada negação, a cada surpresa desagradável?

(percebe-se a pouca vocação deste rapaz para o otimismo)

E mesmo aos lados, em que estagnaria no mesmo ponto, mudando apenas o sentido do seu caminhar. Perambular de um jornal para o o outro, talvez para alguma assessoria, nunca poder utilizar seus possíveis talentos para a escrita da maneira mais apropriada.

Seus devaneios foram interrompidos pela voz comicamente fina do editor do jornal:

– Gui, eu preciso de você lá no Copa D’or.

– Que que tá pegando, Marcelo?

– Ah, nada, é só porque teve aquele escritor….que escreveu aquele livro, “ Canção de Lótus”…me esqueci o nome dele…

– Sérgio alguma coisa?                                                                            .

– Sérgio Malheiros, isso! Bem, ele teve um derrame no aeroporto e foi pro hospital. Todos os sites estão dando isso, e o jornal não pode ficar sem dar. Ainda tá cedo, manda por telefone algumas informações que eu peço pra alguém bater a nota pra você. Vai lá, já tem o carro te esperando.

– Quer que eu leve um fotógrafo?

– Não, isso ai é coisa pequena. Ele já foi muito famoso, mas tá na merda há um tempo. Amanhã, chega um pouquinho mais cedo pra escrever o obituário dele. Vamos ver em qual dia da semana esse desgraçado, morre, hein?

Vendo que Guilherme não rira de sua demonstração de humor mórbida, Marcelo prosseguiu:

– Bem, é isso ai. Se cuida lá e liga pra cá se der alguma merda. Tu sabe o ramal,né?

– Uhum.

– Tranquilo então, vai na fé.

Ao ouvir a última palavra ser proferida, Guilherme já ia desligando o seu computador preto e se levantava de sua cadeira, que ele já sabia que não seria a mesma do dia seguinte, assim como não fora a mesma do dia anterior. Ladrão de cadeira era o segundo ofício dos jornalistas ali presentes.

Foi saindo da redação, rumo à noite carioca. A gráfica do jornal, que era anexa à redação, oferecia uma trilha sonora apropriada para aquele momento: toneladas de papel sendo inseridas nas máquinas que processavam e davam forma ao jornal, com editoriais, calhais, anúncios, matérias, coordenadas,infográficos…histórias a ser contadas e supostos interesses da sociedade escancarados naquelas páginas.

Nem pensou que sairia de lá depois de algum tempo sem ir à rua, que sairia daquela rotina maçante da redação, de computadores com defeito, programas de edição que não funcionam, uma cantina com péssimo cardápio, enfim… Afinal de contas, ele tinha a absoluta certeza de que nada iria mudar.

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O táxi já estava ali, à sua espera. Rapidamente abriu a porta do veículo -amarelo à sua frente e sentou-se na parte de trás.

– Já preencheu o Voucher,amigo? – perguntou o taxista.

– Tá aqui, irmão. Vamos lá pro Copa D’or, por favor.

Assim que o táxi começou a se mover , ele trocou a música que estava ouvindo em seu ipod. Se até então ele estava viajando nas duas guitarras ondulantes do Wishbone Ash, agora toda a sua atenção se prendia a alguns acordes tocados no violão e também ao piano. Aquela melodia melancólica, praticamente a angústia em curvas acústicas, não lhe deixava dúvidas: estava ouvindo Savatage. O carro acabara de passar pela portão de ferro automático, para longe da Rua Santa Maria, e Guilherme ouvia Jon Oliva começar a declamar a letra. Era um vislumbre de esperança para quem, como ele, tinha no pessimismo um amigo fiel e a derrota como um fim inexorável. Principalmente nos momentos de desequilíbrio em sua vida, como ocorria então.

“ Não há vida tão curta que não haja reviravoltas

Não podes passar a vida vivendo abaixo da terra

Longe, lá de cima, não se ouve um som”
Os violões tomavam novamente a dianteira da canção. Dessa vez, havia um som mais alegre, uma possível chance de levantar-se, a fim de mandar às favas as dificuldades e se recompôr para um novo dia.

“ E estou aqui fora, esperando

Eu não entendo o que você quer que eu seja

É o escuro que você está odiando,

Não é quem eu sou, mas você sabe

Que é tudo o que você vê”

Volta ao fundo a melodia inicial. Mal percebe Guilherme que o taxista já estava atravessando o túnel Rebouças. Ele fatalmente faria o caminho mais longo até o Copa’Dor. Mas dane-se, pensou Guilherme, se quem iria pagar por aquilo era o jornal mesmo. Voltou suas atenções para o que estava passando pelos seus ouvidos adentro, chegando ao seu registro cerebral. E falava ao coração.

“ Não há vida tão curta que nada se aprenda

Não há chama tão pequena que nunca se esvaia

Não há página tão certa que jamais se vire”

Após o refrão, as cordas de um violão se insinuam a criar notas solitárias no ar, como se fossem uma voz a mais para a música. Guilherme agora se recorda porque sempre ouvia esta música quando estava no fundo do poço. Já se sentia incrivelmente melhor, disposto a esquecer tudo o que lhe afligia, ou pelo menos armazenar esse vasto material emocional em um canto seguro de sua mente, para que pudesse desempenhar ao máximo suas capacidades.  Assim como dizia a letra,“ Enquanto um milhão de vidas vem e vão, passam por esta mesma nesga de chão”. Ele não queria ser apenas mais um número, mais um zero. Não queria passar despercebido em sua trajetória pré-tumba. Fosse entre os colegas de profissão, fosse com os amores vindouros de sua vida.
E queria aproveitar esta última, por sua vez, ao máximo. Afinal, nada mais ela era do que uma colagem de momentos como aquele, tristezas e alegrias num piscar de olhos, em um par de acordes. A música, a dança….Tudo estava inserido naquele momento, e em tantos outros que já haviam passado. Assim como em tudo o que estaria por vir. Se seu destino estava definido ou não, nunca importou muito a Guilherme. A incerteza era sua guia, lhe norteava como um viajante e sua bússola. A partir dali, não queria ter mais medo de tentar. Acima de tudo, queria arriscar.

Chegara ao seu destino. Após algo que lhe pareceu um tempo de 20 minutos mais ou menos, estava na frente do Copa D’or. Entregou o papel do Voucher ao taxista e saiu do carro com sua mochila nas costas. Havia agora uma missão a ser cumprida. A música que ouvira no carro lhe dera um novo ânimo para alcançar suas metas. A partir dali, prometeu Guilherme a si mesmo, tinha início uma nova etapa. Viver era uma jornada incerta, e ali era apenas mais um desdobramento da estrada a ser percorrida.

Versos à lua

O que fazes aqui preenchendo-nos o céu?

Tuas luzes se vão longe, teus caprichos vão ao léu

Ó lua, das melodias tu és minha voz

Dos amores a nascente, das tristezas é minha foz.

 

Mostra-te a mim, ó lua.